Thursday, December 28, 2006

Páginas em branco- Pág.1


Foto de: Luís Coutinho
Em mutação ao som de: "Paloma Negra" - Chavela Vargas
Uma parede em branco à espera do adeus...
Aqui e ali não necessariamente por esta ordem e todas as imagens a desvanecer-se como se nunca tivessem tido um qualquer corpo na forma de todos os olhos que partilharam, desaparecem apenas...desaparecem....
Entre os dedos sobra o espaço de outros dedos, sobra o espaço de outra mão, a agarrar a minha a entrelaçar os seus dedos com os meus, sobra o apertar do medo ou da raiva, a carícia de um desejo, de um toque, de um roçar de pele...
Guardam-se sem qualquer cuidado os restos do passado...arquivo morto a ganhar pó numa estante disfarçada de estante comum, mistura-se o passado com o palhaço de louça comprado na loja dos trezentos e o queimador de incenso que nunca será acesso...
No fundo da sala deixa-se definhar a planta que morre de sede, que morre por falta de voz e mãos, talvez morra um pouco com ela também, as minhas mãos não são suficientes para os dois...
A cama continua por fazer, a roupa de ontem continua desmaiada sobre a cadeira do quarto, roupa com restos de vários lugares e espaços e pessoas e momentos e...
A cabeça lateja numa alegre dor de cabeça saltitante, as aspirinas, alegres bailarinas, definharam até ao fim da validade esquecidas entre as especiarias para grelhados e a embalagem de comprimidos para gripes e constipações...
O candeeiro continua cego na sua ausência de luz motivada pela morte súbita da sua lâmpada, a luz espalhada por toda a parte, o candeeiro cego de medo e aborrecido...
Os sapatos desencontrados depois de tantos passos estão como separados em caminhos diferentes do quarto, talvez um destino os separasse do caminho comum que iniciaram na forma de passos...
A vontade de dormir cambaleando pelo quarto como um velho bêbado à procura de casa, a vontade de não dormir com o medo dos sonhos tão reais...
Na janela esmagam-se gotas de chuva em busca de um suicídio feliz, o vento enceta um tango rápido por entre os ramos das árvores e canta num sotaque sibilante por entre as portas e janelas mal fechadas, canções de vários amores tristes...

Thursday, December 21, 2006

Crónica Natalícia


Em mutação ao som de: Silent Night
Era uma sensação fora do vulgar das emoções do seu dia a dia, no fim de contas não é todas os dias que nos podemos dar ao luxo de dormirmos numa “caixa” de madeira de nogueira envernizada à medida, forrada de cetim vermelho, mesmo assim, o Pai Natal sentia-se triste.
- Que chatice! - Pensava o Pai Natal quando olhava para o seu corpo rígido e frio, de mãos cruzadas, vestido com um fato de um vermelho mais vivo que o habitual de todos os dias, que ironia.
No velório, velhos amigos e colegas de trabalho espalhados pela sala principal da fábrica dos presentes. Duendes comovidos em função de carpideiras, algumas renas a falarem entre si discutindo o seu futuro nas cadeiras junto à porta, fora da sala, os reis magos a fumar um cigarro e a contar anedotas porcas...
- Boa noite rapazes. Desculpem lá a demora, a minha mãe tem estado adoentada e o meu padrasto chegou bêbado a casa outra vez, além disso apanhei trânsito e uma operação stop, foi uma carga de trabalhos para conseguir sair de Belém. – Disse o menino Jesus enquanto cumprimentava Baltazar e se dirigia em direcção à rena Rodolfo e à Mãe Natal para apresentar as condolências.
O Pai Natal observava agora ao lado do seu próprio corpo todo aquele peculiar evento.
- Isto está cheio de pessoal. Os duendes da fábrica; as renas; os reis magos, esses gajos já devem estar a contar anedotas de idas às putas e por ai fora, é sempre a mesma treta. O menino Jesus veio, como andará a Virgem Maria? Não sei como é que suporta aquele bêbado do São José, a última vez que o vi já não sabia dizer duas palavras seguidas, foi o Arcanjo Gabriel que o levou a casa, já não estava em condições de conduzir o burro. Má bebida!
Todos comentavam entre si, se o Pai Natal tinha deixado testamento, quem seria o herdeiro, afinal o Pai Natal era uma figura pública de renome internacional e de enorme peso na economia mundial. Publicidade, cinema, companhias de refrigerantes, música, e tantas outras coisas. O Pai Natal e a Mãe Natal não tinham filhos e já estavam divorciados há algum tempo. A relação entre os dois nunca mais tinha sido a mesma desde que o Pai Natal tinha sido involuntariamente envolvido num escândalo de pedofilia, algures num país governado por uma companhia de circo onde só havia palhaços, e em que a oposição era feita por homens pequeninos e inúteis, tipo duendes. O Pai Natal, foi confundido com um tipo que também tinha a mania de usar um casaco vermelho, e ainda esteve dois meses com termo de identidade e residência, até que se apurou o verdadeiro culpado. No entanto todo esse escândalo que abalou durante algum tempo a imagem e reputação do Pai Natal, foi a gota de água para o seu casamento. As constantes infidelidades do Pai Natal com algumas das suas duendes e uma ou outra rena, as constantes noitadas e bebedeiras há muito que andavam a desgastar a relação, o escândalo da pedofilia foi a gota de água. A Mãe Natal pediu o divórcio e refugiou-se nos braços da rena Rodolfo. Estavam a passar férias em Cuba, quando receberam a notícia da morte do Pai Natal.
- E agora como é que vai ser? Quem é que vai gerir isto? Isto sem mim vai ser uma anarquia! – pensava o Pai Natal -Um negócio destes, quem é que vai tomar conta disto? Se os duendes pegam nisto, depressa levam esta merda à ruína, acontece o mesmo que aconteceu ao negócio da Páscoa e ao Coelhinho desde que surgiram os gajos do Kinder Surpresa!
Existia um sentimento de incerteza no ar realmente, não era apenas o Pai Natal que se interrogava sobre o futuro. As renas questionavam-se sobre o seu futuro, estavam no desemprego. Teriam direito a alguma indemnização? Subsídio de desemprego? Que atitude tomaria o sindicato das renas em relação a esta situação? Os duendes, conspiravam entre si sobre a hipótese de tomarem posse de tudo e virarem a produção de brinquedos para a produção de “brinquedos para adultos” e enveredarem pelo mundo da indústria da pornografia. Os reis magos, também metidos no negócio, mas como forma de branqueamento do dinheiro obtido na venda de armas e ópio no oriente, já pensavam num valor de oferta para tomar posse do império do Pai Natal. A Mãe Natal, tendo sido lixada pelo Pai Natal no processo de divórcio através do advogado do Diabo, questionava-se sobre se existiria alguma hipótese de arrecadar alguma coisa agora – Aturei este filho de uma grande puta durante anos a fio! Parte disto também é meu porra! – dizia entre dentes à rena Rodolfo.


O menino Jesus comentava com o arcanjo Gabriel:
- Eu quero lá saber disto! Já não me basta a situação que tenho em casa, o meu Pai, sádico do caraças, desejoso de me ver pregado na cruz para expiar os pecados de uma data de filhos da puta que mal conheço; a minha mãe vitima de violência doméstica por parte da besta do meu padrasto São José, ainda por cima obrigam-me a trabalhar no dia dos meus anos, tenho mais de 2000 anos e ninguém me respeita, menino para aqui e para acolá, não achas que já tenho chatices suficientes que me fodam o sentido?
O Pai Natal começava a ficar arreliado. Passeando-se entre todos eles na forma de espírito, ouvia as conversas e lia os pensamentos de cada um. Umas vezes ria-se outras entristecia-se, outras pensava em mandá-los para a puta que os pariu e chamava-lhes cambada de gulosos e chupistas.
- Então e os ranhosos dos putos? Como é que vai ser este ano? – pensava o Pai Natal à medida que ia ficando incomodado com uma comichão na zona genital:
-Maldita micose! Quem me manda ir às renas e não usar protecção? Mas espera lá, eu estou morto não estou? Então por que razão é que tenho comichão? - Nesse preciso instante começou a ouvir uma voz a chamar por ele, uma voz longínqua, que se aproximava lentamente:
- Pai Nataaaaaaaaaaal.... Pai Nataaaaaaaaaaaal pst! Pai Nataaaaaaaaaaaaaaaaal hey! PAI NATAAAAAAAAL FODA-SE!
Sobressaltado acordou. Tudo tinha sido um sonho. Estava vivo, a micose era real.
- Tu não tens vergonha pois não? É sempre a mesma coisa, vais para os copos com os duendes até às tantas e depois chegas nesse bonito estado. Não tens vergonha na cara?
- Raios partam a rena! Deixa-me a cabeça em paz porra!
O Pai Natal virou-se para o outro lado e adormeceu...
Boas Festas.

Wednesday, December 6, 2006

O primeiro...

Foto de: André Paiva

Em mutação ao som de: Donnie Darko Soundtrack
Naquele instante apenas mais um conceito relativo de tempo, um esquecimento da matéria da qual é feita a ânsia, o desejo com garras de uma solidão ainda quente a lamber os beiços depois de um faustoso festim de gritos e lágrimas de cor azul. No ar rarefeito pela dança do fumo dos cigarros, dispersam-se sombras das imagens de todos os dias que não foram ainda vividos numa enorme escassez de actores para os papéis secundários. A luz no fim do quarto, assume contornos indefinidos de uma paisagem de rostos com sorrisos de máscaras brancas inexpressivas, as vozes que se ouvem, soam como grunhidos soltos ao acaso num assentimento mútuo de um acenar de cabeças e palmadinhas cordiais no lombo dos bonecos de peluche.
Espalhados pelos sofás e cantos daquele espaço, notas musicais de uma valsa lenta e pouca imaginativa, um casal de sombras arrasta-se aos compassos 1,2,3, e 1,2,3 e 1,2,3…
Uma qualquer metamorfose em segundos e tudo se volta a fechar sobre si mesmo, pairando apenas mais um dos sucessivos momentos de frustração e desalento.
Alguém chamou por outro alguém que respondeu com um bater a porta sem dizer adeus, para trás um espaço ainda mais cheio, de vazio, de nada.
O corpo torna-se cansado e mole com a ausência de movimentos, o não mexer, o não agir, o nada fazer apenas movimentos preguiçosos de inspirar e expirar o ar estritamente necessário para a sua subsistência, desperdiçando energia preciosa com um suspiro ou outro em forma ridícula de que espera por algo, ou que lamenta qualquer coisa.
A preguiça de mãos dadas com o medo fazendo juras de amor eterno, a solidão ciumenta e irada roendo as unhas até à cutícula a chorar entre vários copos de whisky puro, sem gelo.
Eu, fotografo todos os momentos à descarada, pedindo poses e sorrisos a todos, correndo atrás dos momentos indiscretos de cada um com uma objectiva teimosa e curiosa, sedento de retalhos do tempo de todos.
Revelam-se as fotos. Todas nas mais magníficas e exuberantes cores, todas a preto e branco, sem excepção...