Friday, February 23, 2007

Páginas em Branco - Pág.3




Um banco vazio, uma rua sem gente, um dia cinzento igual a tantos outros, um conjunto de sombras sem dono e numa esquina suja dois cães a rosnarem um ao outro por um pedaço de lixo...
Hoje é o aniversário da tua morte. Por qualquer motivo que me é alheio não consigo sentir o que quer que seja. Não sinto saudade, não sinto pena, não sinto raiva nem alívio, sinto indiferença. Lembrei-me apenas porque me cruzei com o teu marido na rua e entre parcas palavras, ele disse que fazia hoje um ano que tinhas morrido. Acenei que sim com a cabeça como se me lembrasse perfeitamente da data mas creio que os meus olhos desinteressados não me souberam encobrir, ou então sou que ando a ver coisas onde não as há, e a forma fria como o teu marido se despediu de mim e me virou costas seja apenas fruto da minha imaginação...
Não tenho trocos para o tabaco, e acabo por ter de comprar um jornal que sei que não vou ler apenas para não me atazanarem o juízo porque pago um maço de tabaco com uma nota de 20 euros. Compro um jornal qualquer local e leio a primeira página enquanto espero por um café duplo e uma torrada, desisto do jornal ao fim da primeira dentada numa torrada queimada e fria. Não tenho paciência para reclamar com o empregado, pago e deixo uma gorjeta de 2 cêntimos. Saio com um bom dia escarrado e um sorriso camuflado de indignação latejante. Que vontade que tive de o mandar levar no cu...
A caminho do carro lembrei-me de ti, lembrei-me de ti no dia em que morreste. Tinhas passado toda a manhã comigo a ajudar-me a comprar um fato para uma entrevista de trabalho que tinha num banco, não cheguei a ir à entrevista, mas fiz questão de levar o fato vestido no dia do teu enterro. Almoçámos no restaurante da Olga e falámos de ti e do Matias, ou melhor, tu falaste do Matias, eu simplesmente limitei-me a olhar para o teu decote e a pensar em todas as vezes que já tínhamos ido para a cama os dois. Antes de conheceres o Matias, depois de conheceres o Matias, depois de casares com o Matias, quando o Matias esteve no hospital depois de ser operado ao coração...Queria acabar com a conversa de “chacha” e saber se íamos para a cama ou não. Não me interessava que andasses preocupada com a saúde do teu marido, nem que os teus filhos andassem mal na escola, nem que a tua sogra fosse uma jóia de pessoa se já estivesse morta, nada disso me interessava, queria saber apenas se havia sexo ou não, nada de amor e carinho, apenas sexo. Nunca tive paciência para palavras meigas e carinhos, coisas românticas e bonitas, sexo e chega. Uma necessidade de carácter fisiológico que se sobrepõe a essas tretas todas, apêndices desnecessários que apenas geram mal entendidos e complicações pós coito. Mas não te perguntei nada, deixei-te falar durante todo o almoço, durante a sobremesa e durante o café. Acendi-te inclusive um cigarro para não te atrapalhares e perderes o fio à meada, o raciocínio correcto da tua história. Falaste, falaste, falaste, falaste, eu não ouvi, fingi que ouvi acenei educadamente com a cabeça, soltei os “hum hum” , os “pois”, os “sim,” os “pois é”, mirei-te o decote vezes sem fim e fumei 3 cigarros enquanto tu fumaste um durante o café...
A passo lento passei por uma florista e pensei em comprar-te uma flor e talvez ir ao cemitério, à tua campa, mas senti-me um idiota hipócrita e incoerente. O que ia lá fazer? Para que te levaria eu uma flor à tua campa? Nunca te ofereci flores quando eras viva ia oferece-las agora que estás morta? Mas que ideia tão estúpida a minha realmente. Que coisa tão parva...
Quando saímos do restaurante seguimos no teu carro até à zona centro da cidade. Deixaste-me ao pé do meu carro, deste-me um beijo no rosto e foste embora. Confesso a frustração que senti e fiquei realmente chateado por ter perdido tanto tempo a ouvir-te, e no fim de contas fiquei agarrado à vontade... Olha-me esta cabra, disse entre dentes quando meti as chaves no meu carro e vi o teu carro a afastar-se, a ficar cada vez mais pequeno e mais pequeno e mais pequeno, tão pequeno como algumas horas mais tarde realmente foi ao embater de frente com um camião, ficando feito num amontoado de ferros irreconhecível, o teu corpo esmagado, destroçado...
Os teus filhos que idade terão? Sinceramente não me lembro, o mais pequeno tinha 8 ou 10 anos e o mais velho 12 ou 14. Sei que tem dois anos de diferença entre eles, mas a idade não me lembro. Enfim. Há uma coisa que sempre estranhei quando falavas do mais velho, o Marco. Sempre que falavas dele e me mostravas fotos dele, ou quando aparecias com ele sempre me olhavas de forma diferente, olhavas para o miúdo e depois olhavas para mim, olhavas para mim e depois para o miúdo, e essa coisa sempre me fez confusão. Cheguei a pensar em perguntar-te se o rapaz era meu filho, a forma como nos olhavas, e realmente o puto até tinha algumas semelhanças comigo, mas creio que isso fosse normal, afinal o Matias é filho da irmã da minha mãe o que faz dele meu primo direito, e o que podia explicar algumas das parecenças, digo eu. Mas nunca te perguntei nada, e tu nunca nada me disseste. Sinceramente, se o gaiato é meu, ainda bem que nunca me disseste nada, já que o mais provável seria que eu não o reconhecesse como tal. Nunca seria um bom pai, não lhe saberia dar o que um miúdo precisa, ou melhor sei lá eu o que um miúdo precisa! Seria um estorvo para mim, e eu, uma má influencia para o rapaz. Está melhor assim com o Matias. Ele que o ature...
Foi o Matias que me avisou da tua morte. Telefonou-me ao cair da noite e contou-me que tinhas perdido o controle do carro e te tinhas enfaixado de frente num camião que vinha no sentido oposto ao teu. Lembrei-me de te ver a afastar no teu carro cada vez mais pequena, e mais pequena e mais pequena, tal como é o que sobra de ti em mim, cada vez mais pequeno e mais pequeno...

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